A verdadeira intimidade do Zen
John Pappas
O coração íntimo e pessoal do Zen bate audível em Jakusho Kwong-roshi, e ele compartilha esse estrondo vindo da terra com seus alunos, próximos ou distantes. Sentimos sem escolha essa mesma força, esse mesmo ímpeto que conduz Roshi. Diferentemente da batida dos tambores de guerra ou da marcha uniforme dos coturnos dos soldados, essa batida é completamente orgânica e imutável. O estrondo do Zen não submerge os sons ao nosso redor, do mesmo modo como a meditação em silêncio não apazigua o ambiente. Ele se torna parte da cacofonia do trânsito das cidades — do canto dos grilos — do choro das crianças. O Zen de Roshi não subjuga o sabor de nossa vida. Não é uma fuga. Ele é o sabor de nossa vida.
A melhor expressão do Zen não é nada além da experiência desta vida e deste momento. A sabedoria é cultivada e alimentada pela meditação e pela atenção, simples e determinada. Sem níveis ou categorias, progresso ou medida, embelezamentos ou poderes, sem princípio nem fim, o shikantaza é a prática derradeira de experimentar a simplicidade do silêncio do agora. Os únicos sons de nossa luta são o movimento da respiração e a batida do coração.
Educado por um pai exigente e rigoroso, um tradicional médico chinês que vivia em uma região não asiática da Califórnia, Kwong-roshi foi submetido a uma disciplina rígida e a uma educação estoica. Em meio a essa rotina exigente, Kwong-roshi começou a explorar a liberdade e o oásis temporário da arte, mergulhando no Zen dos Beats.
Quando frequentava o San Jose State College, Kwong-roshi teve uma dupla experiência do despertar: ao encontrar Laura, sua alma gêmea e futura esposa, e ao sofrer um acidente de carro que o levou a afastar-se da vida acadêmica e a mergulhar em sua prática zen. Essa prática era na época moldada pelo estereótipo beat de uma iluminação boêmia e de uma vida sem preocupações. Distanciando-se da infância rigorosa e estoica, e ainda mais distante da prática estrita e formal da escola Soto-Zen que em breve o definiria, Kwong-roshi continuou sua exploração da ênfase romântica que a Geração Beat dava à iluminação, kensho, ignorando por completo a prática rotineira e diária que caracterizaria as futuras gerações de praticantes zen nos Estados Unidos.
Kwong imaginava encontrar tradicionais esteiras de bambu e fileiras de almofadas de meditação (zabutons e zafus) alinhando-se no centro zen de Shunryu Suzuki, mas o que viu foram apenas fileiras de bancos de igreja em um prédio decadente. O que Kwong pensou consigo próprio era que aquilo lembrava as escolas dominicais, e, quando Suzuki-roshi entrou na sala, “fiquei pensando como aquilo era muito formal. Ele olhou para mim e nem mesmo me virei para retribuir. Meu ego era enorme. Esperei que chegasse ao altar, mas quando olhei estava apenas arrumando as flores, e disse para mim mesmo: ‘Isso é muito formal’ ”. Em contraste direto com a Geração Beat, a ênfase que o Zen formal dava ao rotineiro e ao ritual era vista como excêntrica e falsa. Mas a natureza compassiva de Suzuki-roshi e sua mente zombeteira logo começaram a atrair e converter mais Beats para a prática formal — uma prática na qual a liberdade é conquistada primeiro pela atenção à forma e à disciplina.
O Zen excêntrico da comunidade monástica era confinador e implacável, quando comparado ao Zen fluido e não ortodoxo da Geração Beat. No entanto, o que constitui um Zen excêntrico? É o ritual estoico dos centros e mosteiros zen que torna excêntrica uma prática e a destitui de sentido? O ritual vazio e o incenso rançoso de costumes em decadência servem apenas para confinar e sufocar a liberação e a liberdade? A adesão estrita à forma fornece um horizonte falso com o qual o praticante se mede. Como se espreitássemos pela proa de um navio com a esperança de vislumbrar uma costa distante, tudo o que alcançamos é uma tênue fileira de nuvens que fornece a forma e o contorno de montanhas e vales — um oásis vazio em um deserto silencioso.
O Zen excêntrico da Geração Beat era livre e irrestrito quando comparado à disciplina e ao ritual monásticos. Loucos e espontâneos, os Beats recusavam a forma e não criaram nenhuma ilusão de estrutura. Mas, sem vigor ou sem uma estrutura, os salões e cafés ofereceriam apenas um nevoeiro de fumaça e regozijo que parodiava a liberação. A verdadeira liberação não é finita, nem pode ser atingida apenas pela compreensão espontânea. Exige disciplina da mente e do corpo. É ao sentar-se em silêncio que um praticante conduz o bote para a outra margem. E não a dança de marinheiros embriagados em torno de uma embarcação à deriva.
O Zen não tem nada a ver com a prática rígida dos mosteiros, nem com a espontaneidade dos Beats. Cultivar o dharma requer grande empenho, grande fé e grande dúvida. As sementes podem ser plantadas pela confusão, pela mudança e pelo desespero, ou pela alegria, pela liberdade e pela estase. Genjoji, ou “O Caminho da vida Cotidiana”, templo de Kwong-roshi, invoca o estilo particular de ensinar de Kwong-roshi, assim como a verdadeira prática do Zen — o empenho honesto e uniforme. Simples, rígido e forte. É quando aprendemos que a batida de nosso próprio coração, acalmada pela prática, corresponde à batida do coração tanto da disciplina monástica como da liberdade Beatnik que transcendemos a ilusão e entramos na prática.
Então aprendemos a verdadeira intimidade e o verdadeiro Zen.
Nas palavras de Kwong-roshi:
“Quando cultivamos nossa compreensão e nos tornamos conscientes do que estamos fazendo, e de fato vemos o que está acontecendo em nós mesmos e ao nosso redor [...] não temos de esperar até conseguirmos sentar em lótus completo, ou até que pratiquemos por dez ou vinte anos, como se somente então algo fosse acontecer. Alguns de nós se sentam com as pernas cruzadas, outros em meio lótus, outros em lótus completo, outros em estilo birmanês ou em uma cadeira. Essas são apenas visões diferentes de uma mesma lua. Algumas pessoas pensam que uma forma é melhor do que outra, mas isso não é verdade. Somos realmente como a lua: qualquer quantidade de luz cria um halo completo.” (Kwong-roshi, Nenhum começo, nenhum fim: o coração derradeiro do Zen [No beginning, no end: the ultimate heart of Zen])
http://magazine.dharma.art.br/2010/04/celebracao-e-compromisso/
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