B o n d a d e f u n d a m e n t a l
Chögyam Trungpa
O propósito de dharma/arte é superar a agressão. [...] se nossa mente está preocupada com a agressão, não pode funcionar da maneira adequada. Por outro lado, se nossa mente está preocupada com a paixão, existem possibilidades. Na verdade, o talento artístico está de alguma maneira relacionado com o nível da paixão, ou com o intenso interesse pela qualidade intrigante das coisas. A curiosidade é exatamente o oposto da agressão.
O Sol do Grande Leste representa a noção de despertar e também as noções de energia, luminosidade e brilho. Basicamente, essas qualidades representam o estado fundamental da mente que um artista deveria ter. Ele deveria ter esse tipo de visão e esse estado de ser; do contrário, surgem muitos problemas e dificuldades. No início, a visão do Sol do Grande Leste é muito preto no branco. Quando o sol brilha, é branco; quando o sol não brilha, é preto. Temos de abandonar nossa ideia de sermos indulgentes ou preguiçosos com a possibilidade de algo simplesmente ocorrer em nossa experiência. Obviamente, existe espaço para uma mente aberta na visão do Sol do Grande Leste, na medida em que esse é fundamentalmente um estado da mente no qual estão envolvidos o despertar, a iluminação e a mente aberta. No entanto, para termos uma mente aberta, temos de abrir muito os olhos, não apenas olhar para os lados de relance, olhando para as coisas com os olhos semicerrados.
Essa é uma questão muito importante: se temos uma mente e olhos completamente abertos, podemos ser mais discriminativos, e julgar a situação adequadamente. Somos capazes de dizer sim para certas coisas e não para outras. Na verdade, é bem possível que possamos nos abrir ainda mais, apresentando-nos e agindo na situação. Dessa maneira, desde que saibamos seus perigos e méritos, mesmo assuntos questionáveis poderiam ser incluídos. Então, é muito importante que o artista tenha essa primeira mente, ou mente artística, que do ponto de vista do Sol do Grande Leste é desperta, e não semi-adormecida. Se estamos despertos e neste exato momento, então podemos fazer malabarismos com as coisas. Isso é sanidade e abertura fundamentais.
Tendo visto a visão do Sol do Grande Leste de uma perspectiva completamente desperta, podemos começar a desenvolver a não-agressão. Comumente, tentamos tirar vantagem do mundo — explorar nosso mundo ou massacrá-lo. Temos em relação a nosso mundo precisamente a mesma atitude que temos com as vacas. Tomamos seus bezerros e exploramos as mães para fazer manteiga e queijo — se elas sobreviverem o bastante. E, se elas não produzem nada, ou até mesmo se apenas dão a impressão de que não produzirão nada, nós as massacramos e as comemos. Essa é uma expressão de agressão, que é a versão do sol poente de como vemos nosso mundo — e também de como vemos a arte. Se uma obra de arte é engraçada e produtiva, seguimos em frente; no entanto, se não é, desistimos dela e mudamos para um assunto diferente. Então, aparentemente a não-agressão é muito importante.
O que nos torna cegos? A agressão torna-nos cegos, de maneira que não podemos criar dharma visual. O que nos torna surdos? A agressão cria a surdez, portanto, não podemos produzir dharma auditivo. E, por causa da agressão, o toque do dharma, o odor do dharma ou o sabor do dharma também não podem ser produzidos. Quando estamos tensos, estamos sendo agressivos. Estamos tão insatisfeitos com nós mesmos, nosso mundo e nosso trabalho que começamos a sentir que nada tem valor. Ou pelo menos sentimos que algumas coisas não têm valor, enquanto outras podem ter algum. Prestamos atenção e consideramos as coisas tão pessoalmente que, quando qualquer negatividade acontece em nossa vida, nos tornamos agressivos e tensos. No geral, poderíamos dizer com bastante confiança que a agressão nos faz cegos e surdos, e não podemos produzir uma obra de arte, sem falar em qualquer outra coisa. Não podemos conduzir nossa vida. A agressão torna-nos surdos-mudos, e transformamo-nos em vegetais. A agressão pode produzir uma assim chamada obra de arte extraordinária, mas a arte produzida dessa maneira polui o mundo, em vez de produzir algo refrescante e saudável.
O propósito de dharma/arte é tentar superar a agressão. De acordo com a tradição budista vajrayana, se nossa mente está preocupada com a agressão, não pode funcionar da maneira adequada. Por outro lado, se nossa mente está preocupada com a paixão, existem possibilidades. Na verdade, o talento artístico está de alguma maneira relacionado com o nível da paixão, ou com o intenso interesse pela qualidade intrigante das coisas. A curiosidade é exatamente o oposto da agressão. Experimentamos a curiosidade quando existe um sentido de querer explorar cada canto e descobrir cada possibilidade da situação. Ficamos tão intrigados pelo que experimentamos, vimos e ouvimos que começamos a esquecer a agressão. Imediatamente, nossa mente está à vontade, seduzida por uma paixão maior.
Quando estamos em um estado apaixonado, começamos a gostar do mundo, e começamos a ser atraídos por certas coisas — o que é bom. Obviamente, tal atração também acarreta a possessividade e algum sentimento de territorialidade, que vem depois. No entanto, diretamente, a paixão pura — sem gelo, sem água, sem soda — é boa. Pode ser bebida; é também alimento; podemos viver dela. É bem maravilhoso que tenhamos a paixão, que não sejamos feitos somente de agressão. É algo como uma graça salvadora que possuímos, o que é fantástico. Deveríamos ser gratos à visão do Sol do Grande Leste. Sem a paixão, não poderíamos experimentar nada; não poderíamos lidar com nada. Com a agressão, temos maus sentimentos a respeito de nós mesmos: ou nos sentimos tremendamente íntegros, de modo que somos os únicos que estão certos, ou nos sentimos irritados porque alguém está nos destruindo. Isso é patético. Impede-nos de ver a bondade fundamental.
A bondade fundamental é como um arranjo floral, que possui seu próprio contraste e seu próprio sentido de todo. É um todo completo, e ao mesmo tempo convidativo e destemido. Tal arranjo floral é um produto da bondade fundamental, se é possível dizer isso. Ele se mantém como um todo. Não há premeditação; apenas está reunido no exato momento — bondade fundamental. Por exemplo, hoje fui para as montanhas colher alguns galhos e esta árvore estava lá, apenas esperando para ser colhida. Quando a vi, disse: “Ah! É esta”. Tivemos de trabalhar na árvore um tanto para poder transportá-la, mas isso também é uma expressão da bondade fundamental, de como as coisas se mantêm juntas. A bondade fundamental combina as qualidade do céu, da terra e do homem: a bondade fundamental do céu, a bondade fundamental do homem e a bondade fundamental da terra estão todas envolvidas ao mesmo tempo. A bondade fundamental inclui a generosidade e a coragem. Existe também uma noção de que as coisas são circulares. É como o princípio do mandala, no sentido em que cada coisa atua junto com todos os outros elementos, que é a razão pela qual o todo mantém-se junto tão bem. E nós mesmos começamos a sentir isto, que a bondade fundamental existe em nós. Portanto, não temos medo de nosso mundo, não ficamos deprimidos com nosso mundo. Sentimo-nos muito bem.
Sentimo-nos bem com a obra de arte particular que estamos fazendo, e começamos a ter outras ideias. Algumas pessoas tentam forçar as ideias, como se estivessem constipadas, sentadas no vaso sanitário, olhando de vez em quando para o papel higiênico, desejando que algo apareça. Quando os artistas fazem isso, o resultado é muito tímido e técnico. Eles sempre fazem alusão a tecnicidades e tentam produzir algo a partir delas — no entanto, não se sentem realmente bem com o todo. O que estamos falando aqui é o oposto disso. Não é exatamente como ter uma diarreia, mas há algum tipo de fluxo livre, no qual temos a confiança de que podemos de fato produzir ideias. Podemos não ter ideias no início, mas podemos chegar a algumas no meio do caminho. Se não temos nenhuma ideia no meio do caminho, ou se sentimos que todas as nossas ideias se foram, então fazemos uma pausa breve, quase como se estivéssemos desistindo. Então o Sol do Grande Leste se levanta em nossa mente. Isso não é apenas uma ideia — é algo que de fato acontece em nosso estado mental.
A bondade fundamental está relacionada à generosidade e a um sentimento de confiança em nós mesmos. Quando esse sentimento de confiança irrompe, desenvolvemos o que é conhecido como harmonia. Se não existir confiança, então não haverá harmonia. Tudo bem se dissermos que tudo está em harmonia e que deveríamos trabalhar isso; no entanto, isso são apenas palavras ocas, dizer que algo deveria ser feito, ao passo que ninguém de fato faz nada. Isso me faz lembrar de certas conferências religiosas das quais participei. A primeira foi uma conferência sobre a harmonia, e ocorreu em Nova Delhi enquanto eu vivia na Índia. Então houve pequenas conferências sobre a harmonia na Califórnia. Convidaram rabinos, bhikshus, sacerdotes, toda a gangue. Todos falavam sobre a harmonia, mas não encontravam nenhuma harmonia naquele exato instante. Embora estivessem falando sobre a harmonia, não havia nenhum resultado. Nada acontecia, absolutamente nada! As pessoas vieram à conferência e foram embora iguais. Mas, ao voltarem, diziam: “Participamos de uma conferência sobre a harmonia; portanto, nossa organização se fortaleceu”. No entanto, como isso seria possível? Isso é muito triste. Isso beira o sol poente, e não é sequer sofisticado, mas um sol poente primitivo.
A harmonia tem de estar relacionada a algum sentido saboroso e rico. Esse é um aspecto da harmonia. O outro aspecto é um sentido de espaço e abertura. O lado saboroso tem quase as qualidades de uma mãe judia: é repleto, rico, com muita coisa sobre a mesa, por assim dizer. A abertura e o sentido de espaço são como uma casa japonesa, onde as coisas são muito esparsas. Não há móveis grandes, nenhum sofá vitoriano, somente esteiras. Quando dormimos, dormimos tendo como travesseiro um bloco de madeira ou mesmo uma pedra. Então, a verdadeira harmonia é a casa judaica e a casa japonesa convenientemente reunidas. Tecnicamente, poderíamos chamar isso de lar de Shambhala, ou lar do Sol do Grande Leste. E o mesmo tipo de harmonia poderia ser verdadeiro também em nossas obras de arte.
Quando tal harmonia acontece da maneira adequada e por completo, existe também alegria — pela simples razão de que não estamos lutando para criar harmonia. Dessa maneira, estamos também criando uma sociedade iluminada, que somente pode existir com esse sentido de harmonia e curiosidade e tudo o que discutimos. É nosso dever criar uma sociedade iluminada através de obras de arte e de nossa sanidade. E, obviamente, a prática da meditação é muito importante. Assim, em nome do céu, da terra e do homem, faço uma reverência.
http://magazine.dharma.art.br/2009/06/bondade-fundamental-chogyam-trungpa/
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