Este blog é um depósito onde coloco coisas essenciais, para tê-las reunidas, para alegria minha e dos demais frequentadores. Esta entrevista é fantástica, envolve muito do que gosto:budismo, poesia e geração beat.
O original está publicado no Dharma Arte, belissimo e valoroso site http://magazine.dharma.art.br/2009/12/inteligencia-espontanea-a/
A pérola está ai, para beneficio de todos, para iluminação geral, para o florescimento da compaixão.
Allen Ginsberg era aluno da Columbia University no início da década de 1940 quando conheceu Jack Kerouac. Juntos, integraram o movimento que mais tarde se tornaria conhecido como a geração beat. Em 1972, ele iniciou seus estudos com Chögyam Trungpa Rinpoche e continuou a praticar na tradição de Shambhala, e também com Gelek Rinpoche. A entrevista a seguir foi realizada pela Tricycle Magazine no apartamento de Ginsberg em Nova York na primavera de 1995, e é publicada com exclusividade em língua portuguesa por Dharma/Arte, em acordo com Tricycle Magazine. As imagens que acompanham esta entrevista foram gentilmente cedidas por Allen Ginsberg Estate, fundação responsável pelo legado de Allen Ginsberg.
Você poderia falar sobre as dúvidas de Alan Watts sobre o “Beat Zen, Square Zen, and Zen” [texto de Watts publicado em 1958 na Chicago Review] e a enorme influência da geração beat na literatura, assim como no budismo nos EUA?
Não acho que Watts percebia que ele próprio passaria seus implementos e seus ornamentos sacerdotais para Gary Snider, que esperasse que Gary adotasse sua linhagem e nela continuasse, ou que Phillip Whalen se tornaria um mestre zen da linhagem de Suzuki Roshi ou que haveria uma universidade budista como Naropa, fundada por outros poetas beat. Watts era um crítico da versão hippie do Zen Beat.
Críticos da geração beat, bem como dos transcendentalistas, costumam ver os dois grupos como tipos religiosos pouco usuais.
Bom, eu sou um budista excêntrico, não medito muito. Não me importo em ser um budista excêntrico. Por que não? Alguém tem de ser um budista excêntrico. Mas todos nós nos comprometemos com nossos mestres e trabalhamos seus ensinamentos por um longo tempo, fizemos o que podíamos dentro de nossas capacidades. Mesmo Burroughs, que definitivamente não é um budista, tem um sabor budista em suas imagens da transitoriedade com um tipo de coragem, um sentido de aventura espiritual e um reconhecimento da vacuidade junto com a compaixão, isso é surpreendente. Mas o sabor da poesia americana definitivamente mudou quando passou a ser permeada pelo sabor budista que agora tem.
O que significa sabor budista na poesia contemporânea?
Consciência de uma prática meditativa, consciência do paralelo entre a prática estética e artística do dharma e a atenção na poética. Interesse na inteligência espontânea. Interesse no tema como sutilmente sendo a mente em si mesma em vez de algo puramente materialista e externo. Talvez algo da doutrina dhármica, como a transitoriedade e “tornar-se amigo de seu ego”, e não a versão anterior, marxista, católica e puritana, que persegue e assassina o ego, decepa sua orelha ou queima seus manuscritos como fez Gogol. Ou escondendo sua homossexualidade como Henry James. Acho que é a ideia de “fazer da sua neurose o caminho” ou “fazer da sua neurose seu animal de estimação” através da consciência, transformando as sobras em tesouro, em vez de lutar contra ela, como outras ideologias fizeram neste século.
O budismo libertou a poesia contemporânea de qualquer fixação ideológica sólida pelo sentido de elegância que T.S. Eliot assinalara ao falar de Henry James como “detentor de uma mente tão refinada que nenhuma ideia poderia violá-la”. E eu diria a mesma coisa de mim [risos] ou de Burroughs. Quero dizer que Burroughs tem um milhão de ideias, mas não torna nenhuma delas sólida, de maneira permanente. Você possivelmente encontrará algum teórico europeu obcecado por uma ideia, marxista, católica ou nacionalista. Não acredito que possa dizer isso de muitos lamas. Na melhor das hipóteses eles têm uma mente tão refinada que nenhuma ideia poderia violá-la ou tornar-se sólida em sua consciência, capturá-los. É como a ideia de “eu” versus “não–eu”, ou forma versus vacuidade: sabedoria coemergente em vez de polarização.
O zen tem um estilo parecido: contraditoriedade, sabedoria louca baseada no fato de que as coisas tanto existem como não existem — verdades relativas e absolutas. Não é preciso abrir um buraco na cabeça para atingir a iluminação. Você pode ter várias ideias contraditórias na cabeça sem pirar, a habilidade negativa de Keats. Claro que você pode sair em busca “do fato e da razão”, desde que isso não seja uma insistência agressiva, irritabilidade que motive a busca do fato. É minha opinião. Mas historicamente há um tipo de respeito pela tradição budista, pelo imaginário budista, pela calma e pela contemplação, pela imperturbabilidade ou implacabilidade budista, pela quietude budista na literatura norte-americana desde os transcendentalistas até Sherwood Anderson, Marsden Hartley, os americanistas. Na linhagem boêmia, sempre houve um pouco de budismo.
Como você entende a espacialidade da América do Norte e o dharmakaya — o céu do espaço da Grande Mente, que tudo engloba?
Uma coisa que sempre notei na escrita de Kerouac — talvez todos os bons escritos transcendentais ou místicos — é que ela inclui um sentido de vastidão do espaço. E a obra de Kerouac possui uma consciência panorâmica, um tema a que ele se refere livro após livro. Cidade pequena, cidade grande tem um capítulo fantástico perto do final: uma visão de um jogo de futebol americano, uma cena no campo, uma cena nas arquibancadas, uma cena nas cabines de transmissão de rádio no alto das arquibancadas, então uma cena no alto das arquibancadas, e as nuvens acima do estádio, o céu vasto, e a câmera recua até o estádio lá embaixo, bem distante. É como um grão de areia no espaço, como diria Trungpa, então, aquela sensação de um espaço que tudo circunda, ou de um espaço que acomoda, ou de uma vastidão panorâmica, ou de espacialidade (mais uma das palavras preferidas de Trungpa), é recorrente na obra de Kerouac. Em Os vagabundos do dharma há muito disso, a intensificação da nostalgia, o reconhecimento da mortalidade e da transitoriedade, a compaixão pelo herói e uma tomada bem do alto, olhando de cima uma cena, como em um sonho. Sempre achei que a identificação feita por Trungpa do espaço em si mesmo e da espacialidade com a mente comum é um genial trabalho de tradução, de um conceito a outro, do dharmakaya ao espaço em si mesmo, e isso me levou a reconhecer que frequentemente a pedra-de-toque de Kerouac, ou seu ponto de referência, está nos poucos pontos no tempo nos quais tudo se abre para esse espaço e há um panorama do mundo suspenso nesse espaço. Ele retratou isso em romances, que são como “montanhas e rios sem fim”.
Quando você fala dessa linhagem de boêmia em relação à geração beat, o que a faz americana?
O aspecto pragmático. Também o desenvolvimento da espontaneidade na poesia, na pintura e no cinema. Também, em vez de habitar abstratamente, a distância, textos onde não há mestre, na verdade, buscamos e conseguimos alguns mestres. Fui para a Índia conscientemente atrás de um mestre.
Essa viagem foi em 1962?
Sim. Na verdade encontrei muitos deles, mas não achei nenhum com quem trabalhasse na época. Mas minha intenção era encontrar um mestre e descobrir “os segredos do Oriente”. Era simples assim. E encontrei mestres com quem mais tarde trabalhei nos EUA.
Esse impulso para encontrar um mestre nunca parece ter preocupado Kerouac.
Como escrevi no prefácio de Pomes all sizes, de Kerouac (City Lights, 1993): a qualidade mais pura de Kerouac era sua compreensão de que a vida é realmente um sonho (“um sonho já acabado”, ele escreveu), sendo também real, tanto real como um sonho, ambos ao mesmo tempo. A realização do sonho como a quididade deste universo penetrou a inteligência espiritual de todos os escritores beat em diferentes níveis, tanto a desconfiança de Burroughs de todos os “fenômenos sensoriais aparentes”, o Evening sun turned crimson de Herbert Huncke, a agudeza paradoxal de Corso — como em “A Morte, encondendo-se debaixo da pia da cozinha: ‘Eu não sou real’, gritou. ‘Sou apenas um boato espalhado pela Vida’ ”.
Mas a doutrina da consciência de sunyata — vacuidade —, com toda sua sabedoria transcendental que inclui consciência panorâmica, vastidão das cidades marítimas, uma apreciação bem-humorada dos mínimos detalhes do grande sonho, especialmente a “personagem na desoladora solidão desumana”, está mais clara e consistentemente estabelecida no corpo da prosa, da poesia, dos ensaios e de tudo de Kerouac.
Atualmente, temos uma boa noção, ainda que de certa forma surpreendente, do que o movimento beat produziu. Você tem alguma noção de onde isso tudo levará?
Tenho uma noção muito clara. Recentemente estive pensando muito sobre como a filosofia básica budista da compaixão de um bodhisattva para com os seres sencientes vai em sentido absolutamente contrário ao do pensamento político mais recente, de esquerda ou direita, em todo o mundo. Este é mais e mais “darwinista”. Aparentemente, o mundo caminha rumo ao caos, aos grupos armados, ao colapso dos governos centrais, a um colapso “da lei e da ordem”. Burroughs me mandou um artigo da Harper’s que retratava o caos emergente nos grandes países enquanto os pequenos países se dissolvem sob grupos armados.
Isso parece com o que Burroughs escreveu 15 ou 20 anos atrás, em Wild boys.
Sim. E aquele artigo era um esboço prático do que está acontecendo agora. Como os sérvios não podem controlar os sérvios da Bósnia, e os sérvios da Bósnia não podem controlar milícias internas menores, e isso se repete nas grandes cidades, onde as classes mais baixas estão ficando mais e mais isoladas, e os ricos mais ricos, com seguranças e telas de TV em suas portarias no estilo Park Avenue. Há mais e mais concentração de riqueza nas mãos de menos pessoas nos EUA, e mesmo com a melhor economia do mundo, ainda que todos tivessem o mesmo dinheiro, incendiaríamos ecologicamente o planeta. Essa é uma ideia inteiramente nova, que não haverá reparação à destruição imperial, e que não haverá “justiça econômica”. Esse é o ponto, junto com o lugar-comum de “expectativas menores” até mesmo para crianças de classe média alta. É uma situação paradoxal em que você quer um mundo civilizado, mas, em contrapartida, como você pode manter seu mundo civilizado quando os demais estão passando fome? E há as guerras civis no exterior, na América Latina, África, que também ocorrem nas ruas da América do Norte. Demagogia sobre homogeneidade e imigração está tomando forma tanto na América do Norte como na Alemanha. Quanta imigração você pode suportar? Então há todos os argumentos sobre quanto restringimos as reservas dos países que arruinamos por tomar refúgio aqui.
A Preposição 187.*
Sim, dado o desemprego atual, quantas pessoas mais podemos assimilar? E quantas pessoas podemos sustentar neste sistema social, ou a Europa pode manter no sistema social universal controlado pelo Governo de saúde e educação, quando há tal desemprego lá? A população está envelhecendo e há menos gente para pagar por isso, então, há argumentos óbvios para restringir a imigração em massa. Há argumentos sensatos, e também reacionários, mas a visão budista é a de uma compaixão universal e justa em todos os lugares. O único limite é que não deveria haver uma “compaixão idiota”. Você faz o que pode, que seja prático, mas a filosofia básica do budismo é o oposto do darwinismo.
Um budista conservador diria que permitir a entrada de muitas pessoas é compaixão idiota?
Sim, poderia dizer isso, mas a filosofia central é a da compaixão, e não a noção darwinista da sobrevivência do mais forte. A noção central é dar espaço em vez de agarrar-se a ele e fazê-lo seguro. Penso que o budismo tem uma tremenda sabedoria para neste momento contribuir no imenso dilema da vida política em todo o mundo, i.e., quais são os limites da compaixão? Quais são os limites em nossa relação com o caos e como nos relacionamos com o caos? Atualmente, politicamente falando, as noções budistas fundamentais são, realmente, radicalmente diferentes da filosofia de vida generalizada que é assumida como verdade entre os intelectuais, mesmo os intelectuais liberais.
Qual é a melhor maneira de continuar a introduzir a compaixão na política?
Bom, penso que todos têm uma inclinação natural para a compaixão. Ela acaba sendo encoberta pelas frustrações, pela ignorância, más experiências, karma negativo, mas, como dizem, por baixo disso, todos têm uma natureza búdica, que é compassiva. É exatamente o oposto da visão hobbesiana, para a qual sob todo homem há um animal rosnando. Basicamente, essa visão negativa está por trás de muitas filosofias neoconservadoras e até mesmo liberais. De certa forma, o ponto do budismo é ouro puro. Não acho que já tenha sido elevado popularmente a fonte de encorajamento, como inspiração política ou pessoal. O sentido generalizado de cinismo entre as gerações mais jovens, o sentido de alienação, a falta de sentimento, encerrar-se na tela de uma TV, a pseudoexperiência de zapear canais realmente não representam as emoções mais profundas que os mais jovens ou os mais velhos têm. As gerações mais antigas tinham a visão multimídia CIA-revista Time-NBC-CBS — uma negação igualmente cínica do coração, e uma ênfase na política hiper-racionalista que é igualmente imperfeita. O assim chamado “inimigo” dos mais jovens, as mídias de plástico, é um inimigo mais antigo do que correntemente se diz.
Há algum motivo para sermos otimistas?
Bem, pessoalmente, sim. Todos têm uma vida para viver e têm uma tendência de bodhisattvas, todos querem fazer o bem, então, penso que, no âmbito pessoal, sim. Em uma escala maior, parece não haver nenhuma esperança, a menos que a compaixão se torne o mais disseminado e importante ensinamento sobre como viver. Compaixão por si e pelos outros.
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