4.11.2013

Dicas do Kerouac para escrever

http://revistalingua.uol.com.br/textos/79/artigo259329-1.asp

Parece ser uma moda hoje em dia, em sites da internet, artigos de revistas, livros inteiros: listas de conselhos ou dicas para escritores, em geral formulados por autores famosos.

Os tipos de conselho variam muito. Alguns se referem a aspectos práticos: como arrumar a escrivaninha, como organizar os manuscritos, como manter anotações, pesquisas, etc. Outros são conselhos estilísticos, sobre o que se deve ou não se deve colocar numa frase. Ou então conselhos sobre a estrutura de um romance, o desenvolvimento dos personagens, a manipulação do enredo. Enfim: parece não haver nenhum aspecto da escrita sobre o qual não se possa encontrar hoje não apenas manuais inteiros, mas uma quantidade enorme de pequenas dicas que de fato podem ser muito úteis. Principalmente para o autor jovem ou principiante.

Encontrei uma lista assim, elaborada por Jack Kerouac, o autor do clássico romance beatnikOn the Road (traduzido no Brasil como Pé na Estrada). Kerouac era um escritor intuitivo, não muito dado a cerebralismos. Reza a lenda que On the Road foi escrito num único rolo de papel de jornal, que ele enfiou na máquina da escrever e foi usando e desenrolando até terminar o livro, para não perder tempo tirando a página escrita e colocando outra em branco. Isso dá uma medida do grau de espontaneidade que ele procurava. E do quanto essa espontaneidade era frágil, um encantamento que podia ser quebrado por um gesto tão simples e automático quanto o de trocar de lauda.

Intuição
A adaptação do livro para o cinema, pelo brasileiro Walter Salles, com Kristen Stewart (Crepúsculo) encabeçando o elenco, terá seu lançamento mundial no Festival de Cannes em maio, no qual concorre à Palma de Ouro, e estreia no Brasil em 8 de junho. É uma oportunidade de apreciar a obra e um bom pretexto para olhar com atenção os conselhos de Kerouac, que podem ser vistos integralmente no site de Língua, para os que leem inglês, e também estão disponíveis emwww.harbour.sfu.ca/~hayward/UnspeakableVisions/misc/kerouacessentials.html
Não comentarei todos por falta de espaço (são 30 itens). E também porque há alguns que não entendo, embora me pareçam bastante poéticos: "Escritor-diretor de filmes terrenos patrocinados e angelizados no Paraíso". Parece ser uma soma final (é a última dica) do que ele pretendia ser como autor. 

Em todo caso, Kerouac é capaz de conselhos de ordem prática que considero bastante sensatos, como: "Tente nunca ficar bêbado fora de casa". Dicas de método criativo: "Rabisque em cadernos secretos de anotações, ou páginas datilografadas sem método, apenas para seu próprio prazer". Eu diria que a maioria das coisas que ele prega não se dirige a escritores inexperientes, mas a escritores bitolados por excesso de prática (ou por excesso de teoria, que bitola muito mais). 

Como os beatniks em geral, Kerouac queria libertar a energia criativa pura que torna o ato de pensar e o ato de escrever uma única coisa. Daí suas advertências: "Remova suas inibições literárias, gramaticais e sintáticas". "Tiques visionários estremecendo no peito". "As indizíveis visões do indivíduo". "Lute para esboçar o fluxo que já existe, intacto, na sua mente". "Compor de maneira selvagem, indisciplinada, pura, vinda de baixo, quanto mais louca melhor".  

São anticonselhos - justamente o contrário do que vemos na maioria dos manuais de redação. Por quê? Imagino que os manuais se destinam aos autores inexperientes, que são só intuição, desejo, vontade inarticulada de se exprimir; e essa vontade precisa ser disciplinada através de técnicas frias, objetivas, que ponham ordem na casa, isto é, na mente criadora. Kerouac parece estar se dirigindo a escritores já calejados, cheios de malandragens da profissão mas esvaziados de 
fogo criativo. 

ExortaçõesSeus conselhos não são meras exortações retóricas. Alguns são muito perceptivos: "Algo que você sente encontrará sua própria forma".  Creio que ele não se refere ao vago e frouxo "sentir" de quem está meramente com vontade de escrever alguma coisa, mas a um sentimento profundo, urgente, que se transforma numa força irreprimível. Se houver concentração e intensidade, a forma acabará surgindo. 

Certas dicas dele deveriam ser escritas na parede, com pincel grosso: "Não pense em palavras quando ficar bloqueado; procure enxergar melhor a cena". 

Um erro bastante frequente de quem escreve é tentar sair de um atoleiro ou de um "branco" criativo iniciando uma frase, depois outra, outra e mais outra... E todas vão ficando incompletas. O ideal é esquecer a página e se concentrar basicamente na visualização do que está acontecendo na história, para que se possa descobrir um ângulo interessante para mostrar isso, e assim as palavras virão como consequência.

Jack Kerouac diz algumas coisas que são, digamos, mais reflexões espirituais do que propriamente recomendações técnicas literárias com aplicação objetiva. 

"Acredite no contorno sagrado da vida". "Aceite a perda, para sempre". "Apaixone-se por sua vida", entre outras. Mas a quem esse tipo de conselho poderia ser útil? Talvez a pessoas que não têm nada de importante ou relevante acontecendo em si mesmas. 

Esvaziamento
Pessoas para quem escrever é um simples pretexto para publicar um livro, ver sua foto no jornal, dar um coquetel, distribuir autógrafos, fazer-se entrevistar... A obra literária, em si, é uma tarefa chata que precisa ser cumprida, porque sem ela o resto não acontece. O mundo está cheio de escritores assim.

"Apaixonar-se por sua vida", aliás, é um bom conselho para quem quer escrever, e curiosamente não implica vaidade ou narcisismo, mas sim um esvaziamento do ego. 

O grande escritor é aquele que acha a vida algo maior que ele próprio, algo digno de ser escrito; e que acha que o livro que está escrevendo é mais importante do que ele, que o escreve. 

Jack Kerouac foi um escritor que conseguiu ser menor do que os livros que escreveu, e esses conselhos mostram como alcançou essa forma zen de grandeza.


Braulio Tavares é compositor, autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005).btavares13@terra.com.br

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